Modos de ver (documentário)
Eu gostei muito do episódio inicial do documentário "Ways of Seeing"(1972) pelo fato de ele questionar algumas suposições sobre a pintura e a maneira que nós a enxergamos e interagimos com ela. O documentário é bem instigante, algumas problematizações são densas e fazem pensar - ou olhar - fora da caixinha, além de trazer provocações sobre a forma de olhar para o mundo. Nessa perspectiva, o que eu mais gostei foi como o termo "ver" tem um sentido ampliado, isto é, ver é mais do que enxergar, visualizar; ver, na forma empregada no documentário, vai além do sentido da visão, sendo uma experiência completa que envolve todos os sentidos e as percepções do contexto. Cada imagem teria um modo de ver único, mas cada indivíduo também tem o seu modo de ver único. Assim, a percepção da imagem seria uma experiência particular para cada um, em cada lugar e em cada tempo. Contudo, o documentário mostra como a reprodução por meio de câmeras permitiu que o significado das obras seja multiplicado e até manipulado pelo novo contexto em que vemos suas reproduções. Nesse momento, surge uma voz no filme falando como se fosse a própria câmera - essa passagem me lembrou muito o texto manifesto "Animação Cultural" do Flusser - dizendo que ela mostraria uma nova forma de ver o mundo. O documentário ainda trata sobre a mistificação em torno da obra de arte, um mecanismo que impede a interpretação direta das obras, mantendo o que era para ser acessível restrito a grupos elitizados. Por fim, a questão do valor de mercado também é problematizada: o valor da obra deixa de estar no que ela mostra para estar no que ela é, principalmente, no quão rara ela é.
Assim, o texto me fez pensar em algumas questões:
1- Em um momento do episódio, o narrador diz que "A reprodução torna o significado das obras de arte ambíguo.". Eu acho essa afirmação um pouco contraditória dentro do próprio documentário, visto que ela transmite a ideia de que, antes da reprodução em massa, existia um significado delimitado e fechado para as obras de arte. Eu não concordo com isso e acho que o próprio episódio dá evidências de que nunca houve esse significado bem delimitado. É claro que a reprodução fez com que as obras fossem observadas em novos contextos e, consequentemente, surgiram novos significados, mas mesmo antes dela - quando a obra era única e pertencia a uma lugar determinado - cada pessoa tinha uma forma de olhar própria sobre essa imagem e, portante, ela adquiria um significado individual. Então, dizer que os significados da obra se tornaram ambíguos só depois da reprodução em massa é, de certa maneira, desconsiderar o modo de ver particular das pessoas que já produzia significados diferentes, e até contraditórios, antes mesmo da reprodução.
2- Considerando que o documentário foi lançado em 1972, muitos recursos tecnológicos novos foram desenvolvidos desde que essas reflexões foram feitas. Se naquela época, eles concluíram que a câmera cinematográfica mostrava uma nova forma de ver o mundo e provocava uma multiplicação dos significados, o que diriam sobre os dias atuais, em que praticamente todos os aparelhos celulares têm câmeras e outros recursos, como apps de edição e montagens, na mão do usuário? Na minha opinião, hoje mais do que nunca esse processo de multiplicidade de significações é uma condição de qualquer imagem que vemos, seja por meio dos celulares ou nas obras de artes em museus. Isso porque, cada indivíduo se torna um agente ativo na construção contínua dessas significações.
3- Eu concordo muito com a ideia do documentário de que a mistificação que cerca a arte é um mecanismo de diferenciação social e, mais que isso, um artifício para manutenção de um certo status que faz com que a maioria das pessoas não se identifique com a arte, uma ideia de que "isso não é pra mim". Mesmo com a reprodução, que teoricamente tornaria o acesso à arte mais fácil e democrático, ainda persistem tendências que afastam o grande público das obras de arte. Assim, de que maneira seria possível aproximar mais as pessoas das obras de arte e fazer com que elas se sintam confortáveis para realmente explorar seus modos de ver essas obras? Acho que uma educação que incentive a formação artística - no sentido de cultivar os diferentes modos de ver - é um ponto de partida bem interessante que, somado a desconstrução da mistificação, pode tornar a arte mais democrática.
Comentários
Postar um comentário